PRA INICIO DE CONVERSA -30/11/2012
01-. A transformação do licenciamento
ambiental em mais um instrumento de criminalização da reforma agrária
Notícias recentes parecem corroborar cada
vez mais a percepção de que, em vez de constituir um instrumento de
construção de unidades produtivas rurais sustentáveis, a exigência legal do
licenciamento ambiental dos projetos de assentamento rural do Incra tem
funcionado frequentemente como mecanismo de criminalização da autarquia e das
famílias assentadas e operado como estratégia indireta de desconstrução do
(ainda pouco e insuficiente) esforço para minorar a pobreza rural e a
concentração fundiária.
A crítica contida nessa percepção não põe
em dúvida a necessidade de que todos os produtores, comprometendo-se com a
preservação ambiental, busquem formas adequadas de manejo e uso dos recursos
naturais, em nome do bem comum e do futuro com garantia de preservação da
vida com qualidade. O problema está em que essa exigência, que se impõe
igualmente a todos, nem sempre se aplica igualmente a todos. As seguidas
judicializações da questão do licenciamento ambiental dos assentamentos
rurais não se restringem unicamente à punição dos mais carentes e
indefensáveis, mas inviabilizam, nos seus efeitos, a própria continuidade da
política de reforma agrária.
O caso específico do PDS – Projetos de
Desenvolvimento Sustentável, criados em São Paulo em anos recentes, ilustra
um paradoxo: atribui-se aos assentados, cujas práticas contribuem para
recuperação produtiva de uma área previamente degradada, o encargo de arcar
com o passivo ambiental legado pelos antigos proprietários, sem que coloque
em pauta a responsabilidade destes últimos, que se locupletaram com o uso
predatório da terra, pelos danos causados ao meio ambiente. O exemplo dos
hortos paulistas é paradigmático: a terra foi esgotada por explorações
desordenadas de eucalipto, realizadas sem qualquer preocupação com regras de
utilização sustentável dos recursos. Os ocupantes anteriores impuseram a
monocultura em prejuízo à vegetação da região, comercializaram a madeira e
deixaram a área sem a obrigação de recuperá-la. Transferiram essa
responsabilidade ao Incra e às famílias assentadas, que encontraram a terra
já degradada.
No caso em questão estranha-se que o
ministério público não tenha aberto nenhuma investigação sobre o nível da
violência e a crueldade praticada pela polícia militar à mando da prefeitura
local durante o processo de reintegração de posse. Foram tiros de bala de
borracha para todos os lados, chegando a arrancar parte da orelha de
lideranças que ali presentes defendiam as famílias. Em seguida passando com
trator sobre os barracos destruindo barracos, móveis, produção. Situação
fartamente divulgada à época. Área pública federal na qual a prefeitura
manifestava seu interesse de entregar ao capital privado local.
Inclusive, desde 2008, o INCRA solicitou o
documento da prefeitura para fazer o licenciamento ambiental. Contudo,
ignorando a manifestação do Incra, o pedido de licenciamento está parado na
Secretaria Estadual do Meio Ambiente.
Em tais circunstâncias, recomendamos ao
governo federal que declare a incompetência do governo do estado em licenciar
assentamentos de reforma agrária e que o mesmo seja elaborado pelo IBAMA a
exemplo do que ocorre com obras de interesse do governo federal.
O que poderia ser uma solução adequada – a
destinação dessas áreas aos sem terra no âmbito do programam de reforma
agrária – acaba por se revelar um problema. O licenciamento ambiental é
necessário, mas, quando o processo de sua liberação consome, não raro, mais
de um ano em morosos trâmites administrativos, como ocorreu em São Paulo,
outras questões se impõem por sua urgência. Não se pode prolongar
indefinidamente a permanência das famílias nos acampamentos, onde, submetidas
às duras condições da luta pela terra e alojadas em instalações precárias,
elas esperam às vezes por anos para ter acesso a um lote. Da mesma forma,
criado o assentamento, não se pode aguardar indefinidamente a concessão do
licenciamento ambiental para dar início às obras de infraestrutura básica –
abertura de vias de acesso, ligação de rede elétrica, construção de sistemas
de abastecimento de água etc. –, necessárias para assegurar níveis
satisfatórios de qualidade de vida às famílias assentadas. Enquanto o
processo de licenciamento caminha lentamente pelas instâncias burocráticas
estaduais, as famílias assentadas ficam sem luz, sem água, sem acesso aos
recursos que permitiriam sua estruturação produtiva inicial.
Dar início a essas providências, mais que
simplesmente cumprir uma etapa no difícil processo de instalação de um
assentamento – do qual o licenciamento constitui uma parte –, significa garantir
às famílias assentadas condições dignas de subsistência, cuja prestação é
dever do Estado. As necessidades da sobrevivência nem sempre se acomodam aos
prazos da administração.
Chama a atenção, especificamente no caso de
São Paulo, o contraste entre as denúncias que apontam para a inobservância
das exigências ambientais por parte da anterior Superintendência Regional do
Incra (SR-8) e, no mesmo período, o expressivo índice de práticas
preservacionistas em vigor nos assentamentos do estado e constatados pela
pesquisa Qualidade de vida, produção e renda nos assentamentos de reforma
agrária, divulgada pelo Incra nacional em abril de 2011. Os índices de adesão
dos assentados em São Paulo à utilização de métodos de cultivo pró-ambiente
mostram-se superiores aos mesmos indicadores para o conjunto total dos
assentados: 22,69% dos assentados em São Paulo adotam adubação verde, contra
9,07% dos assentados em geral; 63,73% dos assentados em São Paulo empregam
curvas de nível, contra 5,62% dos assentados em geral; 38,07% dos assentados
em São Paulo praticam rotação de culturas, contra 21,15% dos assentados em
geral; 54,09% dos assentados em São Paulo aplicam adubação orgânica, contra
26,96% dos assentados em geral; 25,74% dos assentados em São Paulo fazem
controle alternativo de pragas e doenças, contra 8,13% dos assentados em
geral.
Esse desempenho é tanto mais relevante para
a defesa da atuação da Superintendência anterior na medida em que reflete a
orientação da política de assistência técnica e extensão rural por ela
implementada. Outra avaliação da política de assentamentos no estado, sob a
gestão anterior, foi realizada por uma equipe do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada – IPEA: os resultados desse estudo de campo, apresentados
em três seminários no estado, acrescentam várias evidências positivas em
favor dessa política, e a reforçam a expectativa de que o Relatório Final, a
ser publicado por aquela instituição, possa oferecer um conjunto analítico
mais completo da situação dos assentamentos no estado.
Por fim, a ABRA enfatiza que o respeito às
normas ambientais é requisito integrante do princípio da função social da
terra, em nome do qual a política de reforma agrária se realiza, e, dessa
forma, o licenciamento ambiental é um instrumento fundamental para assegurar
que o projeto de assentamento seja instalado em conformidade com as regras de
preservação do meio ambiente. No entanto, os danos ambientais presentes em
uma área desapropriada têm origem na situação anterior do imóvel, e não podem
representar um impeditivo ou um pretexto protelatório que prejudique o
atendimento da demanda social de caráter emergencial representada pelas
famílias acampadas e assentadas do país.
Brasília, 29 de Novembro de 2012
A Direção - FONTE: ABRA - Associação
Brasileira de Reforma Agrária
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