Comissão
da Verdade lança livro com nomes de torturadores da ditadura
URL:
Versão
para impressão
16/06/2014
18h37 São Paulo
Elaine
Patrícia Cruz - Repórter da Agência Brasil Edição: Stênio Ribeiro
Uma
carta escrita por presos políticos do Presídio Romão Gomes, conhecido como
Barro Branco, em São Paulo, em 1975, e que trazia nomes e codinomes de 233
torturadores do regime militar no país foi revista e virou um livro, lançado
hoje (16) na Assembleia Legislativa paulista pela Comissão Estadual da Verdade
de São Paulo.
O
livro Bagulhão: A Voz dos Presos Políticos contra os Torturadores traz a carta
que foi enviada ao presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil (na época) Caio Mário da Silva Pereira. Segundo a comissão, foi a
primeira denúncia pública de presos políticos sobre torturas e torturadores,
embora outros documentos tenham sido elaborados na época e divulgados, mas de
forma clandestina.
O
nome Bagulhão se refere, segundo o ex-preso político Reinaldo Morano Filho, ao
fato de o documento ganhar volume com o passar do tempo e também porque
bagulho, na linguagem usada por quem estava preso, significava algo que os
“presos temiam muito” ou algo perigoso. O documento, segundo ele, começou a ser
produzido pelos presos em 1969, de forma conjunta, e foi feito de forma
sigilosa, para que os militares não tivessem conhecimento sobre ele. O primeiro
nome da lista de torturadores é o do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra,
que comandou o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações
de Defesa Interna (DOI-Codi) de São Paulo.
O
documento, explicou Morano Filho, consistia em um calhamaço de 28 folhas com as
assinaturas de 35 presos. Além da identificação dos torturadores, o documento
descrevia também os principais métodos e instrumentos de tortura que eram
empregados pelos órgãos de repressão e as condições carcerárias. O texto dessa
carta foi encerrado pelos presos no dia 23 de outubro de 1975, mas ganhou um
post-scriptum dois dias depois para incluir a notícia da morte, sob tortura, do
jornalista Vladimir Herzog.
Morano
Filho, que militava pela Ação Libertadora Nacional (ALN), ficou preso entre
agosto de 1970 e março de 1977, em diversos presídios, entre eles, o Barro
Branco, o Tiradentes e no DOI-Codi. Ele foi um dos que assinaram e elaboraram o
documento. “Como sobreviventes, nos colocamos como testemunhas de assassinatos
e de perseguição política que se fazia naquele momento. Daí resultou nessa
carta”, falou ele.
Para
que o documento chegasse às mãos de Caio Mário, sem ser interceptada pelos
militares, os presos decidiram por uma saída clandestina: eles montaram um
compartimento no interior de uma garrafa térmica, entre as partes de vidro e de
plástico da garrafa, onde o calhamaço foi alojado. A garrafa foi então usada
para servir café aos advogados que visitariam seus clientes no presídio. Com
isso, pelas mãos de um advogado, o documento chegou a Caio Mário. “E sem
prejuízo do café”, disse Reinaldo Morano Filho.
A
carta foi enviada ao dirigente da OAB porque, em agosto daquele ano, Caio Mário
deu uma declaração ao jornal Folha de S.Paulo em que dizia que não tinha
conhecimento de denúncias concretas de prisões irregulares e de arbitrariedades
policiais e de que precisava de mais informações sobre o que estava ocorrendo
no país. “Nós, presos políticos abaixo-assinados, recolhidos no presídio da
Justiça Militar Federal, São Paulo, tomamos conhecimento das declarações
emitidas por Vossa Senhoria lamentando não haver conseguido 'especificações
objetivas' por parte de pessoas vítimas de prisão irregular e de
arbitrariedades policiais. (…) Embora cientes das muitas denúncias concretas já
havidas – inúmeras delas inclusive divulgadas mais recentemente por jornais
brasileiros – vimo-nos na obrigação, como vítimas, sobreviventes e testemunhas
de gravíssimas violações aos direitos humanos no Brasil, de encaminhar a Vossa
Senhoria um relato objetivo e pormenorizado de tudo o que nos tem sido
infligido, nos últimos seis anos, bem como daquilo que presenciamos ou
acompanhamos pessoalmente dentro da história recente do país”, diz o trecho
inicial da carta.
De
acordo com Morano Filho, quando o documento foi tornado público, ainda em 1975,
nenhuma ação legal ou ação judicial o contestou. Nenhuma contestação ao
documento ocorreu até hoje, ressaltou ele.
Um
dos ex-presos políticos que também assinou e ajudou a elaborar a carta foi o
ex-ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e
atual membro da Comissão Interamericana de Direitos Humano Paulo Vannuchi.
Segundo ele, este documento é uma “prova cabal” da existência de tortura e de
violações no período. “Esta é mais uma evidência, muito importante para o
relatório final, para que não pairem dúvidas de que houve excessos e de que
houve dúzias de torturadores sádicos e de que o regime criou uma estrutura [de
violações] e a apoiou”, falou. “Este é um documento curto, fácil de ler e que
precisa ser multiplicado para que todos o conheçam”, acrescentou.
Para
Vannuchi, os relatórios das comissões da verdade de todo o país deverão
abordar, entre outras questões, a responsabilização do Estado pelas violações
ocorridos no período. “Os pouquíssimos participantes da ditadura militar que
admitem que ocorreram torturas - e o Ustra nega taxativamente – o admitem como
exceção. A exceção terá que ser abordada no relatório das comissões, sobretudo
da nacional, para dizer que não foi o excesso de uma meia dúzia [de
torturadores]. Essa meia dúzia [de torturadores] ou 233 nomes ou 400 precisam
ser identificados. Os altos escalões sabiam o que se passava”, disse ele.